
Consigo reconhecer os joelhos dourados do Tiago e os pés da Mãe, ao fundo. Adivinho-lhes os sorrisos rasgados, os braços esticados na direcção da meta. Um amor de mais crescido, ainda que pequenino, mais crescido, colocou-os no fim da corrida. A regra é essa: quanto mais depressa correres, mais preguiça emprestas às pernas. O prémio é da ilusão da velocidade e era eu que estava a concorrer. Houve risos? Gargalhadas, fomos gargalhadas? A ti adivinho-te a felicidade do rosto magro num cabelo igual ao meu, o dedo atento à espera do momento certo. A ideia foi tua? Correste muito depressa e chegaste antes de nós e ainda tiveste tempo de nos fotografar? É possível, sempre acreditei que tinhas super-poderes, mesmo quando já não devia, mesmo quando já não podia, mesmo quando já não tinha como mas não conseguia calá-los. A meta. Tu no fim do caminho, depois dos canteiros de flores encarnadas, segunda estrela à direita e sempre em frente até de manhã, e depois o largo e tu num monte feito de terra viva e minhocas e relva. Aí o abraço apertado, o colo alto de já três anos de beijos. Quando as minhas amigas já eram elas eu continuava a ser o teu riso de bruxa, as tuas paralelas perfeitas na neve, as tuas manhãs no Chiado entre livros usados e postais antigos e os passeios nas pedras da calçada dessa Lisboa das ruas estreitas e dos miradouros. Paciência, agora já não há nada a fazer. Ficou-me o amor incondicional por Lisboa. Fiquei-me o bocado de alma que sou de ti. E na meta o Tiago e depois a Mãe, os outros beijos grandes desta tarde de primeiros amores de jardim. Os gritos felizes e eles a pedirem o colo deles e eu sem entender que o prémio era sempre o mesmo, entregue por ordem de chegada. Não precisava de ter corrido mas tenho a certeza que o Tiago também não sabia. Era só adrenalina e a boca a ficar seca e a Mãe comigo no bebedouro, depois, coração a mil batidas, água na testa, mão em concha e água na boca, bebe mais um bocadinho Meu Amor, mãe olha o Tiago, Tiago pára, Tiago deixa-me, mãe olha o Tiago. A Mãe novamente água, o Tiago que nunca parava, Tu o riso e o super-herói da máquina e dos mimos no fim. Às vezes acho que só corriamos para chegar a ti e te pasmar com o vento que éramos quando pulávamos à tua volta. Índios de chocolate e pó com colónia de bébé. Há muitos anos, antes da Mãe ser Dona Barriga de 9 meses outra vez. Se te disser que ainda guardo flores do campo nos cadernos e que gosto de me demorar nas árvores do pinhal podemos ser brisa que acorda as tuas folhas? Não me mintas se te encontro melhor numa fotografia em que não apareces do que agora, já mais crescida, já pernas mais preguiçosas, já mais água nos olhos que coração, quando entro em casa e te beijo a testa morena encostada no sofá.