15 janeiro 2010

quando uma coisa tiver verdadeiramente graça, vais rir-te

Nao havia razão nenhuma para acreditar, depois de ter desistido de sentir o coração. Daquela vez tinha doído demais e estava decidida a conservar-se num local fresco e seco, fora do alcance das crianças. Tinha medo dos dias mal dormidos e das noites mal vividas, da esquerda trocada com a direita, de dizer as palavras para e sempre, de tomar estradas secundárias para perto do mar e do estômago enleado num novelo-mapa confuso.

Só quando chegou o momento, depois de chorar o vazio, sacudiu as últimas lágrimas das pestanas, ajeitou as madeixas louras com uma mão e saiu do escuro. Num ritmo próprio, o dela. Desceu da prateleira. Rasgou a embalagem. A vida estava lá fora.

E o coração ainda batia, depois de tudo. As pernas ainda tinham força e mantinham-na de pé. Os pés ainda eram bonitos, de dedos compridos com unhas geralmente pintadas de encarnado, e caminhavam para lá, para já, para onde fosse. Os olhos desinchados brilhavam esverdeados na cara e viam mais longe que nunca. Estava maior, mais alta, e faltava muito pouco para voltar a acreditar de coração inteiro.

Foi a segunda vez que me ensinou que somos felizes quando queremos.

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