18 dezembro 2008

Deveria saber a laranja

Ninguém pode escrever livros se não souber descrever a forma como tira a casca da laranja em 9 fatias imperfeitas e depois lhe despe a pele mais branca e separa os gomos e sente o sumo na boca antes de escorrer pelos pulsos. Uma gota de sumo aquecida no fogo da lenha que arde laranja nas costas. Outro pingo junto ao cotovelo. Mas a pele grossa, das laranjas doces do pomar do alentejo que se penduram nos ramos daquele corredor de laranjeiras que parte da nespereira e continua para lá da última esquina do casão. A pele grossa tão grossa que por baixo a laranja é só uma metade. Uma metade redonda de sumo e mel, pequena como se lhe despissem o Inverno que a viu nascer. Grossa, a pele da laranja branca, a esconder-se por baixo das unhas. As laranjas descascam-se com as mãos, os dedos a desembrulhar os gomos ainda juntos, e depois separados. Separo os gomos. Não, quem escreve livros separa os gomos e sente o sumo na boca e a escorrer nos pulsos. A boca e os pulsos peganhentos e as unhas com pedaços de pele e o cheiro ácido da casca. A laranja fresca, a multiplicar-se em gomos por baixo da pele. A laranja a fazer-se ameaça. Toda a gente descreve a laranja em quartos de lua e eu não quero. Quando a trincar apresso o fim. Laranja-onda-de-sumo-entre-os-dentes. Sabe exactamente à cor que tem. Não ponhas as mãos na boca, sobretudo agora. Junta os troncos, equilibra-os e malabarista-os para não arrefeceres. Passo as mãos nos pés. Gelados. A mesma música em repeat. Eu continuo a cantá-la baixinho. Comi três laranjas hoje mas não sei como explicar que o prazer começa quando entrego o corpo ao ritual de despir cascas no chão. Levo para a cama o cheiro a cascas e sumo. A lareira continua a arder, nas costas de quem escreve os livros que eu não escrevo.

Arquivo